A história do Hélio, é uma história comum. Já ouvimos em tantos lugares, talvez com as mesmas palavras colocadas em diferentes linhas, pronunciadas por diferentes timbres. Mas infelizmente é uma história comum e esta felizmente tem um final feliz.
Há algum tempo venho nutrindo um desejo de conversar com um morador de rua.
Não. Não é mais este o termo usado. E acho isso bom. Uma evolução de conceitos, evitando preconceitos.
Passamos do mendigo para o morador de rua e agora: pessoa em situação de rua. Como vim a saber, a rua deve ser transitória e nunca um endereço fixo.
E a minha conversa se deu de maneira inusitada, sem eu esperar.
Reciclo o meu lixo (porque o meu prédio não o faz) num supermercado.
Sou recebida por um homem simpático, sempre com uma boa palavra.
Numa tarde, ele parecia estar tranquilo em seu serviço, o lixo todo separado, empacotado, ele puxou conversa e eu aproveitei para perguntar se era verdade que aquele projeto do supermercado auxiliava moradores de rua.
Ele respondeu entusiasmado que sim e me pediu se eu tinha uns dez minutos para ouvir a história dele.
“Eu fui uma pessoa em situação de rua, dona. Porque é assim que a gente fala, não é morador de rua... Morei três dias na rua”
Migrante do Ceará, veio sozinho para São Paulo morava numa pensão e trabalhava como motoboy. Com bons resultados, mobiliou seu modesto quarto com geladeira, fogão, TV e financiou uma moto nova.
Foi assaltado, levaram a moto, deram-lhe um tiro. Dois meses de internação, sem visitas, sem preocupar a mãe distante e com 86 anos. No dia da alta, ainda mancando, com muletas viu toda sua mobília envolta por sacos preto, seu quarto ocupado porque não havia feito pagamento. Não tinha como pagar, era autônomo.
Vendeu tudo ali mesmo. Com o dinheiro foi para uma outra pensão. Quarto coletivo. Pagou seis meses e comia apenas uma vez ao dia. Sentia fome.
Ao final dos seis meses, sem dinheiro, sem emprego, ainda debilitado em seus movimentos, saiu a esmo.
Foi para a rua.
Foram três dias, onde no segundo ele achou que fosse perder a sanidade mental.Ouvi em silêncio, absorvendo cada detalhe até esta parte e daí perguntei o que foi mais difícil. Ainda não conhecia o final da história.
Disse que o pior era apanhar todas as noites.
Sim. Chegou a apanhar três vezes na mesma noite.
“Os boyzinhos param o carro dona e descem chutando, dando socos. Tem até moca que também faz isso e a gente não tem como se defender, eles são muitos. Vão embora e pensa que o pesadelo acabou? Eles voltam trazendo mais amigos para se divertirem batendo na gente”
Hélio me disse que nunca perdeu a fé. A todo instante pedia uma luz.
E essa luz veio na forma de uma assistente social que o levou para um abrigo e consegui-lhe o emprego no mercado. Mostrou-me orgulhoso o uniforme que vestia.
Antes fazia parte de um programa da prefeitura, mas agora está em fase de experiência para ser um funcionário do próprio supermercado. Ganhará mais. Já faz planos. Boa sorte Hélio!
Como disse no início, já conhecemos esta história.
Mas há uma parte dela que me surpreendeu e me paralizou:
Hélio me disse assim – dona, tem uma coisa que é muito ruim na rua. Você está dormindo ali no chão e quando acorda tem pacote de bolacha, tem pão, tem comida pra você.
Ele me disse que entende a boa intenção das pessoas, mas esta facilidade é ruim para quem está na situação.
“A gente fica sem objetivo, sem sentido da vida. Quando você precisa sair e ir atrás de uma comida, você vai andando, você tem um motivo para estar vivo. Quando está tudo fácil, parece que a gente fica mais perto da loucura”
Disse que há muitos em situacão de rua que estão doentes e estes sim precisam ser alimentados e cuidados porque não conseguem se locomover.
Mas eles sabem cada lugar que tem um prato de comida, um lugar para lavar roupas, tomar um banho.
Disse que tem muitos que se acomodam por tanta facilidade e ficam malandros. Com toda dificuldade, ele prefiria caminhar muito, mas chegava, alcançava o objetivo do dia.
Esta é uma parte da história que eu não conhecia.
Um amigo nos inspirou certa vez a refletir sobre ajudar, fazer caridade e ser solidário. A ajuda e a caridade geram dependência. A solidariedade é necessária para aquele momento e promove a independência.
Ouvindo a história do Hélio, acho que consegui compreender um pouco melhor que muitas vezes, nas melhores das intenções posso estar atrapalhando pensando estar ajudando.
Pedi ao Hélio para contar a sua história aos meus amigos pelo computador. Ele autorizou e disse que seria bom porque mais pessoas saberiam que não devemos perder a fé.
Sem dúvida esta é a maior lição. Mas quantas outras nas entrelinhas...