" Já eu vou."
Era assim que ela respondia ao chamado do marido para que fosse se recolher.
Antes de se deitar, arrumava o guarda-chuva deixado aberto na varanda.
Sentada numa poltrona de veludo gasto, colocava o guarda-chuva sobre suas pernas e com delicadeza e demora, dobrava-o. Repassava com as pontas dos dedos cada dobra cada prega. Apertava e girava o tecido preto e mesmo após fechá-lo, ainda refazia alguns detalhes e demorava o olhar saído dos seus olhos azuis pousando-o em seu colo junto ao objeto.
A lágrima que se desprendia feito chuva miúda que escorre devagar, perdia-se em algum vinco de seu rosto envelhecido.
Iria deitar e ao amanhecer beijaria a face de seu marido e entregaria o guarda-chuva desejando um bom trabalho.
Fechando a porta, sentiria por alguns instantes o cheiro da água velva ainda em sua pele. Aquele era o cheiro da manhã. Ao cair da tarde, sabia que ele retornaria cheirando à bebida.
Posicionaria o guarda-chuva aberto na varanda para que escorresse o que poderia ser suas lágrimas que tinham chovido naquela tarde e com seus olhos azuis acompanharia os passos cambaleantes e os lábios que se movimentariam entre palavras mal pronunciadas e uma baba nojenta.
Era tudo. Ele não incomodava. Não gritava, não agredia, trazia o sustento e lembrava de trazer uma rosa branca no aniversário de casamento.
Durante a estação chuvosa, eram esses os gestos dentro da casa herdada do pai polonês, abrigado ali da guerra e de tantas tristezas que os olhos também azuis presenciaram.
O marido embriagado no sofá, levantava-se à hora de dormir. Substituía a roupa de trabalho por um pijama e proferia entre dócil e culpado um "você não vem deitar?".
Nas dobras do tecido preto do guarda-chuva todo o seu amor? Ou a falta e o desejo dele?
Passada a estação das chuvas, o movimento da casa era o mesmo à exceção do tricô que emitia um som quase inaudível durante o encontro das agulhas.
Ana Paula, esse conto emociona muito a gente. Duas pessoas boas debaixo do mesmo teto e um amor culpado de um lado e do outro um amor dócil e submisso. Acho isso muito triste porque se esses amores não explodirem em gestos de carinho, a felicidade nunca pisará nessa casa.
ResponderExcluirBeijo
Manoel
Pois é. Concordo com o amigo Manoel. É bastante triste uma situação como essa. É como se fosse completos estranhos morando debaixo do mesmo teto!
ResponderExcluirGostei muito Ana, nos faz pensar nos tantos casais que convivem tão superficialmente, sem carinho e atenção.
Beijo no coração.
Lindo,tocante mas triste situação. Ele daquele jeito e ela a tudo aceitando e acredito que se viesse uma estação de muito sol, ainda assim ,prepararia o guarda-chuva, pois acho que ali, arrumando-o, espantava suas mágoas. Nada mais tinha pra tocas que não fosse aquilo. Pena,coitada! beijos,chica
ResponderExcluirNão vejo só tristeza. Vejo amor.
ResponderExcluirVejo falhas, faltas, como as que há entre tantas pessoas aparentemente sem vícios, sem excessos ou vazios.
Ele não agride, não ofende, não dá trabalho.
Arrepende-se.
Ah! Se mtas pessoas ainda errando se arrependessem todos os dias de seus erros, eu acreditava ainda mais do que acredito na salvação.
Nas dobras do tecido preto do guarda-chuva todo o seu amor.
Tem um amor e poderá dizer qd as lágrimas forem da falta daqueles dias tão iguais: tive um amor.
Chico Buarque já cantou "Todo dia ela faz tudo sempre igual", como um alerta sobre o cotidiano. O fazer sempre tudo igual pode ser uma zona de conforto, sem surpresas mas nos leva à prisão. è preciso saber voar.
ResponderExcluirQue conto bonito! Lembrou uma imagem que andou circulando no facebook de um casal de velhinhos emburrados de costas um para o outro, mas o velhinho segurava um guarda-chuva para a velhinha. Tinha uns dizeres em baixo da foto assim: "Brigar, sem deixar de amar"
ResponderExcluirAchei lindo, sensível. A dor de um, a compreensão do outro. Um amor cúmplice. O fechar de um dia como o de um guarda-chuva, o recomeçar de outro na criação do tricô. Parabéns, Ana Paula.
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