quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

De acrílico laranja


Era cedo e estava lá. Cedo de ainda não ter batido o sinal do colégio, mas os adolescentes apertavam o passo. Quase o sinal batendo. Ainda assim cedo.
Quis fotografar, mas tive vergonha. Havia movimento, mesmo sendo passos apressados, estavam lá e me julgariam por fotografar uma prancheta deixada no chão.
Voltei para casa e percebi que tinha trazido a prancheta comigo. Mentalmente, mas trouxe.
Apoiei os pensamentos ali e ficou bom para escrever. As ideias fluíram.
Tive, quando criança, dois de muitos desejos: ter uma prancheta e uma gravador.
O gravador não tive, o pai dizia que era muito caro.
A Neide teve o gravador. E a Neide era a mãe da minha amiga, que resolveu, quase perto dos 40 fazer faculdade de direito.
Já tinha enterrado um filho, o primeiro, com um aninho, meningite. Os outros dois, eram altos, saudáveis e meus amigos.
A Neide ganhou uma brasília zerinho e com ela ia para a faculdade e também comprava pacote fechado de fita Basf pro gravador lá no Makro.
Eu também queria ir no Makro, mas o pai disse que era muito caro e tinha que ter cartão especial para comprar. Então a gente ia no Malena mesmo e eles entregavam a compra do mês com uma kombi.
Eu me apaixonei pelo gravador da Neide: um retângulo preto, com os botões também retangulares prateados que ela apertava com o dedo gordo para abrir e colocar a fita Basf, tinha o de começar a gravar, o de acelerar e ir lá pro fim da fita, mas a maioria das vezes ela voltava para trás e ouvia novamente.
A Neide lia em voz alta e gravava as leis, que ela dizia serem muitas e difíceis.
Era muito inteligente a Neide: ela levava o gravador para quarto e passava gel nas pernas e na barriga e prendia algum aparelho que ficava dando choquinhos para emagrecer enquanto ela ouvia as leis.
Emagrecer nunca emagreceu, mas ficou rica depois que formou. Sempre acho que foi o gravador.
De acrílico laranja era minha prancheta, meu pai que comprou. Não me lembro como a usei; lembro-me apenas da felicidade de tê-la ali em meus braços.
No finzinho da tarde, levei o cachorro para passear. Ela ainda estava lá. Fotografei.
Não tinha ninguém a me vigiar, a não ser as câmeras de segurança que podem ter achado um movimento suspeito eu ali agachada com um cachorro em frente a uma prancheta.
A história eu já tinha escrito na prancheta mental que levei de manhã comigo. Fotografei e depois fiquei una instantes a contemplá-la. Inútil. Ninguém a quer.
Eu mesma, o que faria com uma prancheta?
Só que não achei digno que ela ficasse ali em abandono.
Um pouco mais a frente, fardos enormes aguardavam o caminhão da reciclagem.
Acho que ela não é reciclável, pensei, talvez alguém queira apoiar um papel ali e escreva uma história. Ainda que só no pensamento.


9 comentários:

  1. Muito legal e por causa da prancheta,que também achava o máximo, lembraste da Neide, do seu gravador, da sua Brasília, das fitas BASF, do Macro, tantas recordações e ainda bem que fotografaste e a história aqui está! Valeu! bjs,chica

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  2. Também viajei com vc. Que maravilha de texto, tão envolvente te ler, que me esqueci da água do café no fogo heeh. Olha eu tbm sonhei em ter uma prancheta e te lendo lembrei que a filha do delegado amiga minha na escola tinha uma, só ela a Andreia tinha, colorida de acrílico, pink e a gente ficava doida desejando uma, eu nunca tive, minha mãe nunca pode comprar, o máximo era cadernos brochuras e um doce sonhar, que trago na memória, Bjs

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  3. Eu também usei prancheta, mas de madeira, sonhava em ter uma de acrílico colorido, mas nunca aconteceu. Eu adorava usar prancheta para apoiar os cadernos, o que será que aconteceu, ninguém mais usa...
    Adorei sua crônica.
    Bjs

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  4. Ana Paula, eu também tive uma prancheta e antes de tê-la, era como um sonho de consumo de jovem boba. rsss Mas, naquele tempo, poxa, como era moderno usar prancheta! rsss
    A simples prancheta esquecida frente a esta parede tosca, rendeu um belo post de lembranças e reflexões, adorei!
    Tenha um bom feriado e muitos beijinhos carioca.

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  5. Ana Paula,uma velha e abandonada prancheta,serviu de inspiração para uma linda crônica e belas lembranças!Amei!!
    Beijos
    Amara

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  6. Uma história e tanto!
    E aquela prancheta abandonada ganhou um contexto e tornou-se eterna.
    Leva ela para casa!

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  7. eu adoro esses garimpos mentais e até mesmo os concretos de achados e perdidos
    essa prancheta faria boa pareja com a moleskine

    as viagens então, sou delas, sou de viajar de fazer conexões, ponte aéreas e td mais

    tb tive pranchetas e tive rádios de toca fita da casa, era de meu pai e de todos, assim como a vitrola e depois o toca fota com caixas de som e radio e toca cd dado por marido então namorado

    adorei saber de sua prancheta, de seus desejos, sentimentos, histórias
    faltas que nos sobram em lições e valor ao que temos

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  8. A Tina deixou lá no G+. Trouxe pra cá!

    Das histórias gravadas
    Nossas
    Como nossas fossem
    Iguais
    Parecidas
    Objetos
    Sentimentos
    Presos em pranchetas, clipes, chips...presas em nós 

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  9. Olá Ana Paula,
    duma prancheta você fez uma crónica deliciosa, recheada de recordações que até as minhas despertaram - maravilha.
    Também adorava prancheta, usava uma que tinha sido duns trabalhos de meu pai, já usada, forrada a napa fininha vermelha, que, a um descuido ficava com o bico da caneta marcado na napa. Mas eu a adorava, e usava toda vaidosa.
    Com o gravador também sonhei, igual a esse que você traz da sua lembrança, mas não tive, não, que dinheiro não dava para tudo, e eu já tinha conseguido uma vitrola a muito custo, por isso me desse por satisfeita.
    Bom tirar essas lembranças simples das gavetas da memória.

    bj amg

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