sábado, 3 de dezembro de 2011

Gestar


Pari filhos
e agora estou gestando a mim mesma
sem luas a contar
sem exames a fazer
sem dores que amedrontam

Sangro erros cometidos
ideias empoeiradas
e fico mais viva
forte

Sinto a dor das palavras
que já poderiam estar extintas
Nutre-me uma outra linguagem
palavras de um outro mundo

Deste ventre que me gera sem tempo
sem medidas
não sei quando virei à luz
Não importa

Nesta escuridão
meu olhar meu sentir
são tão claros
como a Lua
que segue seu fluxo

E eu sigo o meu fluxo
de gestar a mim
sem luas a contar

Estou me organizando para mudar de cidade e depois temos reforma pela frente. Ficarei ausente. Agradeço e retribuo o carinho recebido. Um beijo.
Ana Paula

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Um Anônimo


Quando se mora em grandes centros urbanos, acostuma-se com os ruídos. Uma questão de sobrevivência.
Tornam-se conhecidos. Mesmo dentro de um apartamento, no alto, aprendemos a decifrar ruídos. Horário de entrada de escola mais carros, chuva, muita buzina, provavelmente semáforos apagados... e assim, mesmo sem olhar pela janela, os acontecimentos se codificam nos ruídos.
Era perto da hora do almoço quando um ruído nos sinalizou algo fora dos padrões conhecidos. Um helicóptero bem próximo, num voo pausado.
Mesmo difícil de ouvir a nossa televisão, ligamos no noticiário local do meio-dia.
Na tela da tv a imagem gerada do helicóptero: uma obra, um prédio, um operário morto.
Seria mais um caso como quase todos dos noticiários: morte, morte, morte.

Reconheci de imediato a construção. Um edifício que abrigará um hospital.
Sim era mesmo a construção que acompanhamos desde o início. A chegada das máquinas, o prédio tomando forma e mais do que isso, os trabalhadores.
Feriados, noite adentro, lá estavam eles: incansáveis no cansaço disfarçado dos músculos e suor escorrendo.
Parados ali em frente à obra, aprendemos sobre cooperação, sobre dons.
O engenheiro com o projeto debaixo do braço necessitando do dom de braços fortes para tornar seu papel realidade. A cooperação de cada um desempenhando o seu papel.
Ali em frente àquela obra, que simplesmente estava no nosso caminho, parávamos para aprender sobre a vida.
Ali conversamos sobre igualdade: não há dom mais importante que outro, precisamos de todos. O operário sujo, queimado de sol, cheirando a suor não é menos que o engenheiro, não é menos que a faxineira que irá trabalhar naquele hospital. É tão igual ao médico, tão necessário. Infelizmente no nosso planeta as diferenças se fazem em tantos aspectos...
Esse operário que nós nunca vimos o rosto, ou talvez tenhamos visto num horário de almoço onde ele poderia estar sentado na beira da calçada, morreu.
Um anônimo que tanto nos ensinou.
Não sei o porquê, de quê ele morreu. Sei que ele não ganhará uma biografia com direito a pré-venda.
Sei que passamos novamente em frente à obra e ali apenas consta em grande placa o nome dos engenheiros responsáveis.
Não há flores ou desenhos pelo chão para homenageá-lo.
Lá dentro, vários trabalhadores anônimos. Disfarçando a tristeza em seus músculos fortes. Escorrendo suor no lugar das lágrimas.
Queria um dia passar por uma obra e ver, como num convite de formatura, o nome de todos que ali trabalham, em ordem alfabética.
O Anônimo também estaria lá.