"... Um mundo em que até os canudos eram envoltos em plástico e em que as pessoas das academias borrifavam desinfetante nos assentos dos aparelhos de musculação, toda vez que se levantavam, como se o suor humano fosse mais perigoso do que as substâncias químicas de seus aerossóis."*
Fechei o livro de súbito, num baque seco assim que terminei de ler esta frase.
De forma alguma era raiva; era mesmo urgência em me encontrar com a memória da menina que ia aos sábados com a mãe no comércio do bairro mais próximo e escolhia a cor de seus canudinhos ( sim, eram dois ) na pastelaria dos chineses.
Calma lá! Não era assim tão rápido...
Tínhamos que tomar um ônibus para chegar ao bairro vizinho ao nosso, o bairro da Penha, onde havia o comércio. Às vezes era por causa de um sapato que ficara pequeno, ou o casamento de um primo; inverno se aproximando, foto três por quatro para a matrícula do colégio.
A mãe gostava de "bater perna": andava, andava, entrava por todas as lojas, subia ladeiras, ruas estreitas, conhecia até alguma loja na viela com a placa amarela - sem saída.
Apesar do cansaço, da rabugice de criança, eu sabia que ao final, antes de voltar para casa, seria recompensada sentada no banco fixo com os braços apoiados no balcão da pastelaria do chinês, que eu nem me importava que falassem que era uma sujeira só.
E era mesmo. Aqueles papéis pardos que saíam do porta-guardanapos e serviam de suporte para segurar o pastel quente e depois para limpar as mãos engorduradas ficavam espalhados por todo o estabelecimento, o que me faz pensar hoje que o problema não eram os chineses e sim os que estavam sentados ao balcão...
A mãe pedia sempre um caldo de cana e dispensava o canudo; eu ia de guaraná caçulinha, com a recomendação de cuidado com a garrafa de vidro e dois canudinhos.
O líquido chegava primeiro que o pastel. Eu escolhia cuidadosamente a cor dos meus canudinhos. Os olhos se demoravam naquele utensílio prateado feito talvez de um alumínio barato com uma abertura para que ficassem expostos e prontos para serem dali retirados, a esmo ou em demorada escolha. Eles eram fininhos e mesmo sendo dois fazia com que a pequena quantidade do guaraná durasse um longo tempo.
Mas, a escritora tem razão.
Volto daquele passeio e me dou conta que já é hora boa de ir à feira (tradução: preços melhores, hora da xepa) saio apressada em companhia da filha que ao final pede um caldo de cana sem pastel.
Diferente da avó, ela quer um canudinho em seu copo plástico.
A frase do livro está ali, mais presente, com mais força ainda. O utensílio que porta os canudos é um material mais lustroso. Os canudos são monocromáticos e isso faz com que o gesto de pegar um deles e rasgar-lhe o plástico seja instintivo.
Meus olhos se demoram na publicidade grudada no porta-canudos: a grande marca de cartões de crédito que tem deixado mais da metade da população doente economicamente.
Minha filha termina rápido, tão rápido que me assusto. É que os canudos embalados são bem grandes; devem equivaler a uns quatro coloridos da pastelaria do chinês e isso faz com que o gostoso líquido acabe mais rápido.
Tudo bem. O moço aceita dinheiro plastificado também.
* do livro "A doçura do mundo de Thrity Umrigar".
Iniciar o dia te lendo é um presente! Adorei o trecho do livro que escolheste e a partir dele cronicalizaste!
ResponderExcluirTempos outros, até os canudos, outros... Mas o essencial o mesmo:mãe e filha juntinhas...
Épocas diversas, cuidados higiênicos diferentes ... Hoje porta canudos mais limpo, mas tão "poluído"..Até na hora de beber um caldo, o apelo comercial...
Muito legal te ler! bjs,chica
Esse lance de limpar o assento com spray na academia me irritava aqui tbm. acho um saco! como ja detestava academia por todos os motivos possíveis, esse foi apenas mais um que me expulsou de vez daquele ambiente chato!
ResponderExcluirMas a Chica tem razao. Comecar o dia te lendo é bom. A delicadeza em pessoa é vc Ana.
Ah, eu era uma chata!... Detestava o suor da academia. Acho ainda continuo achando) que o álcool é indispensável.
ResponderExcluirCrônica gostosa...
Lindo texto como sempre envolvente. Amo ler aqui
ResponderExcluirQue linda crônica, Ana Paula!
ResponderExcluirTambém me lembrei com saudades desse tempo de canudinhos coloridos e fininhos, para o prazer de tomar a bebida se prolongasse. Até isso foi afetado pela era da velocidade? Que pena, não é?
Bjs
Ana Paula, fiquei curiosa com o livro, já o tive nas mãos várias vezes, mas sempre me pareceu que era uma história muito triste e pesada e nunca tive coragem de ler. Depois me diz o que achou?
ResponderExcluirBjs
Tantas coisas boas nos acompanham no decorrer da nossa vida... pequenas lembranças mas com grande valor...! BeijooO
ResponderExcluirAnotado o nome do livro p eu comprar
ResponderExcluirComi pastel e bebi pela primeira vez caldo de cana com limão na feira de Mucugê
2 canudos dá outro sabor as bebidas
Dá para dividir
Adorei td
ADORO te ler
Voltando aos poucos
Oi, Ana Paula!
ResponderExcluirMe lembro da frase da contra capa desse livro: "O melhor lugar do mundo é um só: perto daqueles que amamos". Muito gostoso de ler e refletir sobre a diferença de costumes.
Os sabores da infância são para guardar para a vida toda! Já alguns hábitos adultos é melhor não conviver! Ah, não sei o que é pior, se o suor ou o que guarda nos panos das academias... Por isso os meus esportes são sempre aquáticos! (rs*)
Que beleza de crônica escreveu à partir de uma inspiração que também deu estalo nas lembranças! Fiquei até com vontade de reler o livro, pena que ele já voou...
:)
Beijus,
Obrigada, obrigada obrigada!!!
ResponderExcluirSó alegria aqui em casa! Li tudinho e o primeiro conto que li, abrindo assim do meu jeito, do fim pro começo, foi o "caqui com alho" e vc fala sobre blogar...parecia que havia escrito pra mim nesta fase que estou com o Blog.
Ah...amei, vc tem muito talento e eu amo esta forma simples e rica em detalhes de ver a vida que vc transcreve em palavras.
Parabéns!!! Beijos Ana!!!
CamomilaRosa
Tempos modernos...tão lacrados quanto o envólucro do canudinho, um similar do que vemos pra todo lado, pessoas envelopadas.
ResponderExcluirPor isso e mais, é tão bom ler-te,Ana, nesta manhã lembrada em passeios gostosos feitos por mães e filhas__ antes e agora; doces deleites.
Belo final de semana pra vcs.
Bjos,
Calu
Oi Ana Paula (nome da minha sobrinha), segui o blogroll da Tina, sou assim, quando o título de um blog me atrai, dificilmente erro.
ResponderExcluirE aqui BINGO! Acertei em cheio, que crônica rica.
Sabe, eu sou desorganizada, mas muito chata com limpeza, contraditório, eu sei.
E sabe que aqui ainda tem umas lanchonetes onde os canudos ficam expostos (para constar, moro no interior do Mato Grosso do Sul, sim, DO SUL e não Mato Grosso como chamam, terra do inesquecível Manoel de Barros)?
Não tenho coragem.
Meu pai que já acha que tudo é "frescurite" não liga pra nada, abre até a cerveja e bebe na latinha sem limpar. Eca!
Ele costuma dizer que se a gente for pensar em como as comidas são feitas, nunca vai comer fora.
Talvez ele tenha razão...
Bem, já escrevi muito, vou te seguir porque sigo blogs porque gosto e não para ser retribuída.
Beijos e parabéns pela belíssima crônica!
A inspiração vem de tudo né? Vida, seriados, filmes e até mesmo de um trecho de um livro.
As palavras desse post me fizeram lembrar da minha infância... Sempre que eu e minha mãe íamos ao centro de Belo Horizonte passávamos na famosa "pastelândia", comprávamos pastel de queijo e suco. Bons tempos. Obrigada por me ajudar a relembrar.
ResponderExcluirBeijos,
Nina & Suas Letras
Poxa, me lembro desses canudos fininhos... pegava dois também e nunca bebi guaraná caçulinha quando era pequena. Era maçã em garrafas de 600 ml. A única que minha família comprava, pelo preço baixo. Guaraná só no Natal. E sabe, eu trocaria qualquer guaraná pela maçã bugre. Já tomou?
ResponderExcluirE os pastéis? Só os feito em casa, pela minha mãe... de carne moída.
Lembrança boa!
Ana, um Feliz Natal e um maravilhoso ano novo. Pra e sua família!
Então ano novo, casa nova, delícia!
Beijos