quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A vizinhança

Comprou uma casa.
Contrariou a todos: família, amigos, palpiteiros, desconhecidos, redes sociais.
"Moça solteira comprar casa? Onde já se viu. Como vai morar lá sozinha? Tinha que ser apartamento."
"Vó, eu não vou morar sozinha, eu vou com o Bartolomeu."
"Cachorro peludo e fedorento; estou falando é de gente."

Mudou-se. Depois de alguns dias, com a casa já organizada, foi buscar o cachorro.
Trabalhava em casa mesmo. Arquiteta.
Adorava o horário de verão e na primeira tarde em companhia do Bartolomeu na casa nova, saiu para passear.
Queria conhecer os vizinhos, dizer o seu nome, dizer que morava ali na casa amarela.
Trazia no coração aquela vontade que herdara da avó de levar uma bandeijinha, coberta por papel toalha decorado, com queijadinha que ela mesma aprendera a fazer ou mesmo a torta de atum.

Apesar da tarde agradabilíssima, com uma luz dourada se esparramando pelo chão, um calor forte mas que não castigava a pele, não encontrou ninguém pelas ruas.
Bartô encostou-se num saco de lixo para aliviar-se e ela aprendeu que era dia do coletor; tinha que colocar o lixo para fora.
Naquele saco de lixo grande e translúcido, havia uma caixa de pizza, embalagem de refrigerante tamanho família, uma embalagem de brinquedo; duas na verdade: uma caixa de boneca e caixa de um caminhão.
Uma família! Como a que ela queria um dia formar! Um casal de filhos, uma família que come pizza aos sábados!
A casa era linda com vidraças enormes e a porta da entrada também em vidro deixando-se ver o hall de entrada.
Por várias tardes passou por ali. Com Bartô, seria mais fácil puxar uma conversa, deixar as crianças acariciarem o pescoço peludão do bicho.
Certo dia viu as crianças na garagem brincando! O menino com o caminhão, do mesmo desenho que estava na caixa dentro do lixo.
Demorou-se um pouco ali na calçada. Quando olharam, acenou com a mão e um sorriso.
Ouviu uma voz mandando entrarem.
Três dias depois, funcionários descarregavam de uma caminhonete uma chapa de alumínio. No dia seguinte pela manhã ouvia barulho de furadeira.
Vou até lá sozinha. Estavam fechando a garagem, que antes era um portão de ferro com arabescos e podia-se ver o carro, os brinquedos espalhados, as crianças.
Naquele dia não conseguiu produzir muito. Não tinha criatividade para seus projetos.
Levou queijadinha para a avó e ao retornar a pé, viu dois táxis do aeroporto parados em frente à casa.
As crianças estavam sorridentes. As malas eram muitas e grandes.
De dentro de um táxis o homem perguntou à mulher sobre os passaportes. Estavam com ela.
Viagem internacional.
Sorriu e acenou para as crianças desejando que aproveitassem o passeio.
A mãe impediu a retribuição. Ainda assim, um sorriso escapou dos lábios da menina.

Ela aprendeu a fazer bolo formigueiro.
Faz tempo, no lixo defronte a casa, somente produtos de limpeza.

Fez tantos trabalhos, maquetes em seu curso de arquitetura, defendeu tese da arquitetura e vizinhança e nunca conseguiu entregar uma bandeija com queijadinhas. Sempre havia uma placa metalizada blindando a presença das pessoas.

Segue em sua casa entre decepciona e preocupada com a ausência prolongada daquela família que comia pizza aos finais de semana.

10 comentários:

  1. Adorei o conto.
    Bem atual, tem o jeito desconfiado/inseguro dos nossos dias.
    Morei em um bairro de grandes casas com muros altos, por 3 anos, no interior de MG, e não conheci nenhum vizinho, via-os por coincidência, às vezes, saindo de suas garagens com os vidros levantados .
    A verdade é que não se via nem as casas... rs
    Um dia abençoado!

    http://feitocomcarinhodemae.blogspot.com

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  2. Tanto deve acontecer nessa via e na outra.
    "Cada escolha, uma renúncia. Isso é a vida."

    Crônicas da vida privada nossa e alheia de cada dia, sempre úteis, universais e escritas por você, maravilhosas de se ler :)

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  3. Ótimo texto! Parabéns.
    Tenho uma vizinha que reclama da mesma coisa; achou que morar em um bairro lhe traria prazeres que não tinha vivendo em um apartamento, mas descobriu que não é bem assim...

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  4. Lindo te ler e a verdade nele aparece. Sempre há muros, gradis, nos separando e impedindo nossa aproximação. Os humanos temem os humanos, isolam-se e ficam apenas nas redes sociais.Ali sim, são abertos...até demais! bjs,chica

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  5. Olá,Bom dia,Ana Paula
    que texto gostoso de ler e muito de nossa realidade
    ... vale muito a pena transformar em amigo quem mora na porta ao lado...a amizade, troca de experiências, senso comunitário, se conhecer pelo nome, e estamos seguros,nunca estamos sozinhos, pois sabemos que um toma conta do outro( no bom sentido)...mas, indefectível mas , a boa vizinhança depende de tempo para doar ao próximo. E isso é cada vez mais difícil...felizmente, há pessoas , tal como descrito, que não se importa com as adversidades e procura sempre , estabelecer vínculos com quem vive ao seu redor... Ou seja, o comportamento , gestos simples que incentivam o afeto e a ligação, um sorriso e um bolo de formigueiro, deve vir de nós e estar apoiado em nossas próprias atitudes, educação e formação...
    Obrigado pelo carinho,bom dia de quinta feira, beijos.

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  6. Como é bom te ler!
    Pego-me imaginando as cenas e querendo participar das mesmas.
    Grande abraço amiga! Tudo de bom pra ti.

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  7. Ana Paula, kkkkk! Não sendo "maquiavélico" mas talvez um incêndio na casa contando com o atraso dos valentes bombeiros possa causar a necessidade (ainda que por interesse) de forçar um conhecimento com a vizinhança.
    Horrível essa falta de vontade de bater bons papos e trocar figurinhas. Essa turma não sabe o que é bom.
    Será que o hipotético Dr. José..., conceituado promotor de justiça nunca teve vontade de ser "gritado": Zé, vem cá bater um papinho!
    Enfim...
    Beijo,

    Manoel (Manu, Manô, Mané, Manezinho,... e por aí vai, kkk!)

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  8. Nunca consegui fazer amizade com os meus vizinhos e com certeza o problema deve ser meu. E eu não tenho nem cachorro ou crianças para servir de pretexto para uma aproximação.

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  9. Dá pra explorar gigantescamente o tema vizinhança. E você usou uma abordagem ótima no texto. Simples e que representa zilhares de situações por aí. Temos tanto a aprender com o convívio quanto temos a aprender com o be-a-bá. Cada aprendizado tem sua devida importância, mas é fundamental que saibamos ministrar todos. Que vizinhos queremos ser, afinal? Que humanos queremos ser?

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  10. Oi Ana!!!

    Perfeito o seu conto.
    É uma pena isso. Parece que ninguém quer mais ter contato, ou não tem tempo ou não quer té-lo...
    E aí ficamos assim, sem nem saber o nome do vizinho. Se bem que tem vizinho que é melhor nem saber o nome : )
    Vi sua mensagem!!! Bom que aproveitou o Rio!!! Feliz por você!!

    Estava ausente do mundo virtual. Forças maiores me tiraram e outras maiores ainda me trouxeram : D

    Vou aproveitar e botar a leitura em dia que pelo visto, perdi textos e crônicas maravilhosas!!!!

    Beijo grande e muita paz!!!!

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