sábado, 26 de agosto de 2023

Três colheres


 

Fiz sopa.

Ao abrir a gaveta  para apanhar as colheres, pude ouvir a voz ( na minha imaginação ) da minha filha Júlia naquele exato instante.

_ Mãe, a minha colher, minha colher de estimação eu vou levar comigo.

Minha filha Júlia mudou-se recentemente para Beagá, o jeito carinhoso de falar "para a capital mineira". E ela se esqueceu de levar sua colher mais querida.

Olhe para a foto: é a colher menor em comprimento e possui uma corujinha na ponta do cabo.

Eu me lembro com nitidez. Ela foi presenteada quando ainda era um bebê. Um conjunto de garfo e colher infantis.

Se a menina hoje tem 18 anos, a colher da corujinha tem dezessete vivendo em nossas gavetas.

O garfo? Não faço ideia de qual foi o seu destino.

Mas, então eu fiz sopa e a tomei com a colher da corujinha, como minha filha fazia sem se importar com os códigos de etiqueta.

Marido achou aquilo engraçado. Perguntou se era saudade. Há de ser, eu respondi.

Ele levantou-se da mesa e voltou com uma colher diferente da que estava posta.

- A colher do papai. Disse enquanto a mergulhava no caldo fumegante.

A colher do papai dele, meu sogro, que já nos deixou, é a maior de todas ali na fotografia.

Antônio tinha por hábito comer leite com farinha, mas... tinha que ser com sua colher preferida. Vários adjetivos para a colher do leite com farinha: maior que as outras, mais côncava, pesada. grossa.

Perguntei a marido como aquela colher veio parar nas mãos de seu pai.

Essa resposta ele não tem. Tem apenas "a colher do papai "que, assim que voltou do enterro de seu querido pai, esgueirou-se para as gavetas e antes que um dos onze irmãos se lembrasse do velho Antônio comendo leite com farinha com "aquela" colher, ele a trouxe para casa.

É fato que se vende colher avulsa; essas, porém, são mais simples, mais genéricas.

Os talheres mais elaborados, com algo que traga um embelezamento, são vendidos no coletivo.

Os jogos de garfos, facas. Ou o coletivo mais conhecido deles, o faqueiro.

Fico mesmo intrigada: onde andam os parentes da colher pesada, grossa e côncava de meu sogro? Como ela se desgarrou de seu coletivo, de seu faqueiro original?

Será que todas as pessoas têm um talher, um hashi especial, diferenciado dos demais ali da gaveta?

Por favor me responda a essa pergunta. Há em seu porta-talheres um membro exótico, vindo de outro país, de outra cultura, de uma casa alheia?

Antes porém de você ir lá nos comentários me contar uma boa história de um talher de estimação, veja que na fotografia ainda tem uma outra colher, a do meio, que traz consigo uma história.

Cheguei em casa com um jogo delas. Meia-dúzia para ser exata.

Fui duramente recriminada. Acharam-nas desconforme.

 -Olha pra isso, esse cabo enorme, pra que serve, onde se usa essa colher?

Intimidada, recorri a um vocabulário gourmet e respondi que poderíamos usar num frappê gelado com café e chantily.

- Mãe, não viaja. A gente nunca faz frappê em casa. 

Foi um brinde do mercado ( às favas os mercados com seus brindes; nós pagamos nos preços caros embutidos nos produtos e eles nos vêm com essa, olha, você ganhou, escolha seu prêmio ), enfim, eu tinha direito a escolher um brinde depois de muitos selinhos colados numa cartela a cada compra no mercado.

Meus olhos pousaram na colher de cabo longo e a escolha estava feita.

Nas férias da minha infância não havia viagens para a Disneilândia, não havia casa na praia, nem fazenda dos avós.

Era quintal, gatos, comprar geladinho com moedas e em algum momento daqueles dias preguiçosos, minha mãe anunciava que iríamos ao trabalho do meu pai!

Aquilo era incrível! Eu pulava de felicidade!

Era um acontecimento ir visitar meu pai na barbearia.

Dois ônibus, no intervalo entre um e outro havia o centro da cidade, havia as lojas Mappin e o elevador com ascensorista de elevador ( procurei no dicionário para não escrever errado, acho que tem uns quarenta anos que não escrevo essa palavra ), tinha as lojas Brasileiras, as Americanas e só depois chegávamos à barbearia.

Papai ali na cadeira número um, o guarda-pó branca vestindo-o e um silêncio que era entrecortado apenas pelo tic tic da tesoura. Ele me ensinou que um barbeiro nunca deveria conversar com o cliente, isso era coisa dos cabeleireiros. Um barbeiro não. Apenas respondia caso o cliente lhe perguntasse algo.  Papai era nascido em 1915.

Entre cinco e seis da tarde, entre um cliente e outro, papai nos levava para um lanche na padaria.

Um bauru e suco de laranja.

O suco de laranja da padaria...

Em casa nunca havia suco de laranja. Havia laranjada: duas laranjas espremidas e acrescidas em água.

A cor laranja-intenso do copo trabalhado e alto lá da padaria , contrastava com o laranja-desmaiado da nossa laranjada caseira.

E era isso que deixou uma marca profunda em minha memória: o suco de laranja de cor exuberante e a colher.

Ah a colher da padaria que vinha ao lado do copo, comprida, exatamente como a minha atual da fotografia.

Eu a mergulhava com meus dedos pequeninos, mexia os gelinhos, eu adorava aquela colher e falava sempre dela para o meu pai.

Até o dia em que ele trouxe a colher para casa. Espero que ele tenha comprado lá do moço da padaria ( ele disse que sim ).

Essa colher longa da padaria que esteve nas gavetas da minha infância já está em destino desconhecido e sequer me lembro quando ela partiu.

Encontrar no prêmio do mercado colher semelhante foi encontrar essa boas memórias.

Para finalizar, fica a pergunta: você sabe me dizer para onde vão os garfos, as colheres que se desgarram do rebanho dos seus semelhantes?

E não esquece de contar se você tem um talher de estimação e a história dele!

Bom final de semana! Beijo

ana paula



10 comentários:

  1. Muitos parabéns para a menina/jovem mulher.
    .
    Um feliz e doce fim de semana
    .
    Pensamentos e devaneios poéticos
    .

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  2. P.S. Tenho a foto do conjunto de talheres que foi presente de um aninho dele, eu me contento com as fotos já que não pude guardar tanta coisa que queria. É a vida, diferente para cada um. Bjm

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  3. Oi Ana
    Esse seu texto com a fotografia das colherinhas é uma lufada na nossa infância., e
    a mim trouxe lembranças da convivência singular e diária com as netas e suas colherinhas
    especiais, que vai passando de mãozinha em mãozinha, pelos que vão chegando.
    Agora só ficou aquelas que precisamos ter em casa, mas não são assim ,tão estimadas rs
    Não lembro de ter tido colheres especiais na infância Ana, até porque fui todo o tempo alimentada rs
    pelo pai que não tinha essa sensibilidade feminina dos detalhes fofos e inesquecíveis.
    Confesso que a memória da infância é meio apagada.E, se houve alguma com certeza foi desgarrada
    pela cozinha e sabe-se lá por onde se meteu ...mas não pense que não sou fã de coisinhas de estimação,
    tenho livros infantis já muito gastos e sujinhos e para sempre bem guardados , Estimadíssimos !
    Obrigada , gostei muito dessa sopa que me trouxe lembranças boas.
    Um abraço e boa semana também.

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  4. Ana,adorei as colheres, cada uma com um significado.
    E como ficam as palavras nos ouvidos das mães e avós.Naquele momento parecem estra falando ao nosso lado.Isso é saudade ,sim!
    Quanto às colheres, somem mesmo.Os conjuntos ficam desfalcados e, por isso mesmo, cada vez compro coisas usáveis, mas que se eu jogar fora( em meio às cascas de batata,rs) não vou ficar triste.

    História de colher lembro a primeira vez que fomos num hotel grande com Neno que tinha perto de 3 anos.Ele era TRI CHATO pra comer e de repente, com uma colher que adorou,comia bem.
    Assim naqueles 14 dias, foi chamada de colher mágica e o garçon, bem idoso, ficava radiante em trazê-la pro Neno.

    Resultado: na nossa despedida por lá, ele tinha feito um pacotinho com a dita colher pro Neno.
    Um gesto lindo! Temos ainda em casa !

    Sempre lindas leituras aqui. Fomos praia cedinho, caminhadas e voltamos cedo, pois o calor é grande e não faz bem pra "jovenzinhos" como nós 2"rs...
    beijos praianos, chica

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  5. Oi, Ana.
    Essas reminiscências são uma delícia. Talher de estimação? Menina, eu tinha um kit completo. De minha infância de fartura (fartava tudo... rsrs) vieram dois pratos de metal, que deram pano pra manga para minha mãe se livrar, um garfo muito pequeno, com a colher em tamanho similar. O prato de metal sumiu, o que provocou uma semana de ira em mim, até ser substituído por um de porcelana, que só passei a gostar depois que quebrei um pedacinho dele. Está na casa dos meus pais até hoje. Os talheres, esses eu mesmo me dei conta de que estavam desproporcionais para o tamanho de minha boca, mas os substitutos já têm mais de 30 anos comigo, e isso sem contar a xícaras (canecas, que eu amo e não abro mão) do Pateta, da vaquinha e da galinha (de Porto de Galinhas?PE, que minha irmã trouxe de uma viagem).
    Pra te ser honesto, tenho até panela de estimação, além do bule, do qual não largo.
    Comentário tá ficando longo, né? Bom, quem manda o texto ser convidativo? E nem falei da laranjada e do suco suco de laranja. Descobri a diferença aqui, veja só!
    Minha amiga Ana, que delícia de crônica. Falei tanto e, provavelmente, esqueci da metade. Um lindo fim de semana pra ti e um grande abraço.

    Marcio

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  6. Quando me desgarrei da casa dos meus pais sequetrei não só uma velhíssima assadeira sem cabo e já bastante deformada como a colher de arroz a e concha. As da minha são daquelas que a gente encaixa no vidro do fogão. Na casa de Mainha essa concha e colher eram muito usadas aqui elas pegam poeira, mas me trazem sensação de lar. Quando vou cozinhar lavo, uso, lavo de novo e coloco no vidro do fogão.

    Acabei de ler o texto que você me enviou, ainda estava digerindo, ia já dormir, mas pensei em vim nos blogs da uma olhadinha e cá estou eu chorando horrores... Nossos tesouros domésticos, nossas memórias e pequenos tesouros...

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  7. Bom dia, Ana Paula...
    Bonito texto com as colheres de estimação.
    Não lembrei de alguma história dos meus talheres, mas, ultimamente, fiz um grande desapego de muitas coisas para me mudar de uma enorme casa para um apto de 129 m², já que somos somente eu e o marido, os 3 filhos já estão casados. Daí, desapeguei-me também de muitos talheres, entretanto, alguns trouxe comigo para convívio "de toda vida", inclusive, colheres "bailarinas", dessa que mostra do suco de laranja. Também um batedor de carne e um ralador, que têm não menos de 44 anos na nossa companhia. Ah!, muitos dos meus talheres sumiram há tempos atrás, tive uma empregada que levou, juntamente a outros objetos queridos.
    Uma boa semana, querida... Bjs

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  8. Que belas recordações. Não tenho historias de talheres, mas fiquei com algumas coisas da casa dos meus pais após ambos terem falecido, mas fico triste quando lembro que alguns foram levados por pessoas que trabalharam em minha casa e que nem sei qual delas. Cada objeto guarda uma história dos entes queridos e elas chegam mesmo que os objetos já tenha partido...Amei seu texto. Boa noite

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  9. Oi, Ana, que delícia ler essa sua crônica, claro que imediatamente fui lembrando das minhas recordações, das louças de meus pais que vieram pra mim, algumas coisas fiquei, outras dei para meus filhos, pois não iria usar tantas coisas. E fiquei olhando as colheres!
    Como é bom recordar, o carinho que colocamos em tudo, vieram lá de trás, quando eu morava ainda com eles, e passaram muitos e muitos anos. Mudamos de casa, e as coisas mudavam junto, e coisas ainda de meus avós que minha mãe herdou! Histórias de vida, a nossa história. A infância é uma fase da vida que não esquecemos, talvez a mais importante, aquela fase, momentos que moldaram o que somos hoje.
    Muito bom, gostei muito, também recordei muita coisa.
    Uma feliz semana, muita paz e alegria!
    beijinhos

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  10. Que legal tudo isso Ana Paula.
    Quando li sobre a colher que seu esposo guarda, como recordação do pai dele, lembrei-me do sentido da palavra sacramento.
    Sacramento, na Igreja Católica, é um sinal da presença de Jesus no meio do povo.
    E nós, trazemos vários sacramentos, lembranças, sinais de presenças das pessoas que amamos.
    Eu tenho um "sacramento do meu pai".
    Tenho uma caixinha, um relicário, onde guardo essas lembranças.
    O meu sacramento do meu pai é um relógio. Vou fazer uma postagem sobre isso... e da lembrança que a sua postagem me trouxe.

    Na casa da minha mãe tem colheres de quando éramos pequenas.
    Estão lá.
    Sinto que minha mãe também manuseia esses talheres, quando sente saudade da gente.

    De vez em quando ela diz: "dia desses peguei a colher que você usava e pensei: essa colher tem quase 40 anos!"

    rs

    Tudo isso é sacramento, é lembrança, é sinal.

    Abraço.

    Ana Virgínia

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