Postergou o quanto pode. Demorou-se na arrumação de caixas e, embora não houvesse prazos definidos para as resoluções pendentes, decidiu que seria o momento. Algumas tentativas frustradas via internet e telefone. A presença era indispensável.
Acordou e decidiu que aquela manhã seria o dia de resolver tudo aquilo.
Arrumou-se e fez brigadeiro. De colher.
Talvez fosse só uma maneira de protelar mais alguns minutos sua saída; talvez fosse só para perfumar a casa para quando voltasse, saber que ali era seu ninho.
Já na rua exitou: sempre optara pelos ônibus e sentiu medo. Dirigiu-se para o ponto de táxi.
Prefere ir pelo Anel Viário ou pela J. Lungo?
Não queria, não podia expor sua fragilidade dizendo nada conheço desta cidade.
Impostou a voz para parecer ao taxista segura e dona da situação, o que for melhor para o senhor, respondeu.
Cruzou os dedos para que o moço não tomasse proveito da sua ignorância e circulasse mais do que devia.
Procurou não pensar; apreciou o caminho. Chegou logo. Deu bom, deu barato o táxi.
Nove horas e dois minutos. Estava defronte a um balcão. Rapidamente soube que suas resoluções estavam em outro balcão que começava o atendimento ao meio-dia. Em ponto.
Voltar para casa? Não, o brigadeiro ainda estaria quente. Preferia-o frio.
Não quis fazer contas de nove para meio-dia. Quis andar.
A esmo, sem trajeto previamente definido, sem pressa, sem ter aonde ir.
E foi. Caminhando, caminhando, mais com os olhos do que com as pernas.
O olhar corria à frente. Os pés apressavam em alcançar mas sem ter realmente uma pressa.
Chegou primeiro a uma praça.
Foi tomada por encantamento, afinal ainda não sabia, pelo noticiário, pelo jornal local distribuído gratuitamente, pela vizinha com quem não fizera amizade ainda indignada "o quê, você foi naquela praça? ali tem droga, tem assalto, não te levaram nada?"
Como não sabia de nada disso, apreciou e sentou e reparou muito. Nas árvores, nos banquinhos, nos passantes.
Sabia que era necessário aproveitar. Depois, somente depois saberia que ali nunca se senta, nunca se aprecia. O pior lugar da cidade.
Sentou e apreciou.
Seguiu, depois de demorar a se decidir pelo caminho a tomar.
Contornou demoradamente uma padaria numa esquina. Pelos vidros fumê viu as costas das pessoas sentadas no balcão: café puro, pingado, churrasco na chapa.
Desejou estar ali. Queria estar ali com todas aquelas pessoas. Não tinha nenhum sinal de fome.
Continuou e viu muitas pessoas a sua frente, andando apressadas. Fez o mesmo, porém sem pressa.
Chegou! Lá estava a placa com o nome da rua: 7 de setembro.
Estava no centro. Todo centro tem uma rua 7 de setembro. Adentrou como quem pisa num tapete macio. Automóveis nenhum. Uma rua só de pessoas. A familiaridade foi surgindo: pernambucanas, casas bahia, perfumaria sumirê. Achou existirem em todas as cidades, em todas as ruas 7 de setembro que logo descobriu ser entrecortada pela XV de novembro.
Uma construção antiga de quarteirão inteiro despertou-lhe a curiosidade. Entrou e deu alguns passos para não atrapalhar os outros e pôs-se a reparar no que via, nos cheiros que lhe chegavam. Logo, porém, sua atenção fora desviada pela bonita moça que, olhando realmente em seus olhos, convidou-a a "comer um pastel conosco, ali em frente é o nosso quiosque, vários sabores e sucos para acompanhar".
Encantou-se e não queria desencantar a mocinha que tão atenciosamente fazia o seu trabalho; não podia aceitar. Estava comprometida com a padaria. As costas para o vidro fumê. Disse apenas "depois, depois".
Foi passando pelos corredores do que, sem dúvida, era um mercado municipal e viu-se ao desvio de apenas um de seus passos, rodeada de queijos e vidros bojudos de doce caseiro.
Quis comprar um queijo, assim num impulso. Mas enquanto corria os olhos maravilhada pelas prateleiras, questionou-se sobre o queijo. Acabara de ler um livro onde a protagonista entra numa loja, compra queijo redondo como aqueles e sai com uma sacola a bater em sua perna enquanto caminha pelo metrô de Paris. Seria mesmo vontade de queijo, vontade de Paris, ou do documentário que ainda não conseguiu assistir "O mineiro e o queijo"? Deixou para outro dia e saiu.
Viu-se dentro da biblioteca municipal. Prédio antigo, interior arrojado. Lá encontrou um tesouro: sentados frente a frente uma mãe lia para seu garoto. A voz dela não era possível ouvir, o olhar absorto, quase hipnotizado do guri, sim.
Feito a história de João e Maria, voltou pelo mesmo caminho marcado pelas pedrinhas invisíveis que deixou. Parou ainda por um momento, que deveria ser rápido, só para observar a fachada de um museu.
Demorou-se. Não podia se mover. O abraço que presenciava tinha um brilho a mais. Estavam bem a sua frente, fazendo até desviar outros transeuntes.
Nos braços uma bebê de uns sete ou oito meses. Segurava pela mão uma menina de uns quatro anos de longos cabelos, que assim como os da mãe significavam uma religião. O homem com quem se encontravam era o pai da moça, avô das crianças. Passou a mão pelo rosto da filha rapidamente para depois demorar-se no abraço que tirou os pezinhos da neta do chão. Rodopiaram e sorriram. A bebê chorou na tentativa de aproximação do homem. A filha disse que precisava ir, para que o marido não desconfiasse de nada. Ele agradeceu, disse entender, abraçou com lágrima a filha, abençoou a netinha de colo, disse amar a mais velha.
Importa pouco o que os separou. Importa saber que aquela filha aprendeu o perdão.
Seguiu inclusive emocionada com a cena, para a padaria. De uma próxima vez, já sabe que vai reclamar de pessoas que param no meio do caminho para abraçar, atrapalhando a passagem.
Pediu bauru, ao que o chapeiro ao lhe entregar disse em tom duro, queijo quente com presunto e tomate.
Ela sorriu porque lembrou-se do programa que assistiu sobre os diversos nomes do bauru, Brasil afora. Lá certamente não era bauru!
Caminhou até o balcão burocrático, resolveu e voltou para casa. Passava da uma da tarde.
O brigadeiro já estava frio.
*Agradeço a vocês as manifestações de carinho pela passagem do Antônio. Fez bem a todos nós.
Ana Paula, passeei contigo aqui, primeiro com o medo de ir de ônibus, depois , no táxi e sentei também, inocentemente naqueles banquinhos da praça convidativa!
ResponderExcluirPena quando ficamos sabendo do que não podemos fazer.Ainda bem tudo deu certo! E. tenho certeza, andar assim sem rumo, sem ter onde chegar, é muito bom e quando podemos fazê-lo com olhos de apreciar, sem pressa, é muito lindo! Valeu e ao chegar em casa, ainda um brigadeiro esperava! Adorei! bjs, chica
Oi Ana Paula, explorando a nova cidade? Como é diferente o olhar de quem chega, sem os julgamentos e preconceitos de quem já está acostumado, não é?
ResponderExcluirPena que lugares lindos sejam perigosos...
Gostei da cena da filha levando as netinhas para o avô conhecer.
Bjs e ótima semana
Olá Ana Paula,
ResponderExcluirSabe, às vezes é bom a gente desconhecer certas coisas, viver na inocência dos factos, como sua personagem que senta no banco da praça proibida ;)
Tanta mensagem eu li aqui nas linhas e nas entrelinhas.
*Há pessoas que deixam boas marcas na sua passagem. E quando essa passagem dura no tempo, é bom demais, dá mais tempo para espalhar sorrisos.
bjn amg
Percebo que esta mudança colocou em suas mãos um caderno em branco, prontinho para receber as suas crônicas que são escritas com o olhar de quem está descobrindo o mundo.
ResponderExcluirLugares novos
ResponderExcluirLugares velhos
Uns nos outros
Nós neles
Eles em nós
Tanto
Passeei de braço dado com a moça indômita, curiosa desbravadora dos encantos escondidos, das nuances difusas, das plagas desconhecidas; moça vistosa vestida de poesia.
ResponderExcluirBjos, Ana Paula \o/
Calu
Fui contigo neste passeio, andei, apreciei, senti saudades de lugares que tive medo de estar por saber que era perigoso. a gente perde já tanto nessa vida. Estou com vc em oração pelos seus familiares, bjs e quando der tem novidades no Poesia
ResponderExcluirTexto lindo, gosto de ler você.
ResponderExcluirBeijo, Ana Paula.