Já deve estar fazendo uns dois anos que li uma crônica em que o autor descrevia sua felicidade por ter adotado, aos 80 anos, uma linda bebê.
Interrompi a leitura ali mesmo no primeiro parágrafo para mentalmente bradar que ele era insano, que adotar uma filha bebê aos oitenta anos era absolutamente um ato de loucura.
Até que algo dentro de mim gritou também - ei, ei...
Quando eu cheguei na vida de meu pai, também adotada, ele tinha 56 anos.
As estatísticas de expectativa de vida medidas pelo IBGE começam na década de 40 marcando uma média de vida de 45,5 anos.
Pesquisas indicaram que os nascidos em 1900 viviam em média 33 anos.
Sendo assim, para papai José Augusto nascido em 1915, literalmente já estava vivendo em bônus, de lambuja, no tempo extra como se diria na gíria. Tão louco, tão insano quanto o cara da crônica.
Ambos, papai e o cronista, e tantos outros, deixaram as estatísticas de lado para se basearem em uma única fórmula, o amor.
Lendo o que escrevi, pode até parecer poético e com rara beleza. Eu levei tempo para abraçar essa beleza. Na infância porém, não era nada disso que eu enxergava.
Hoje, a adoção é tão linda, tão transparente, mas naquela época em que eu fui adotada, tudo se resumia em ter sete chaves e trancar e esconder esse fato a todo e qualquer custo.
E claro que não funcionou. Cresci com o sentimento de que havia algo de errado que me escondiam, afinal, puxe pela memória ou olhe as estatísticas - as pessoas casavam-se jovens e tinham filhos ainda jovens, por volta dos vinte e poucos anos.
Ter um pai de 62 anos quando eu entrei no primário, era praticamente uma aberração.
"É sua netinha?" - foi a pergunta que mais ouvi na infância. Depois vieram os comentários maldosos, no sentido de não enxergarem que poderiam estar me causando um sofrimento. Colegas de escola me falavam que eu estava sendo enganada que ele deveria ser meu avô e não meu pai, ou mesmo que meu pai deveria ser outro. Então concluí que eu era filha de mãe solteira, um estigma para a época, e que aquele bondoso e velho homem me assumira como filha. Todas essas elucubrações eram feitas silenciosas e envoltas em lágrimas, mantidas também com sete chaves para que meus pais não soubessem de meu sofrimento.
Claro que todo esse sofrimento foi dissolvido. Gosto dessa qualidade da memória de poder se moldar, acrescentar, decantar os fatos.
Fosse a Ana Paula criança a escrever, leríamos coisas difíceis.
Chuva, sol, invernos, natais, calendários depois a gente tem a dádiva de enxergar além, muito além das limitações da época.
Ninguém ousava dizer a uma criança que ela era adotada. Filhos adotados eram revoltados. Esse era o adjetivo imperativo daquela época.
Também senti vergonha de meu pai. Enquanto via a aparência jovem dos pais de meus colegas nas comemorações do colégio, cheguei a sentir vergonha da aparência velha de papai e sim, me envergonho é dessa atitude que tive.
Papai José Augusto me cuidou com esmero, possibilitou minha vida. Um bebê jogado, sozinho sem cuidados vive apenas alguns dias. Fui cercada de mimos!
E cercada de histórias também, porque afinal ele tinha seis décadas de histórias quando pude compreendê-las e isso foi maravilhoso!
Bonita homenagem a seu pai. O Amor não tem tempo nem idade. Às vezes levamos tempo a entender isso. Sensibilizou-me o seu texto.
ResponderExcluirUma boa semana.
Um beijo.
Que beleza,Ana Paula! Me tocou fundo isso!ADOREI!!!Bela e construtiva leitura...bjs praianos,chica
ResponderExcluirAssim como você, meu pai é bem mais velho do que eu. Enquanto este ano ele fará 82 anos, eu estou a completar 24. Assim como você, quando eu era criança perguntavam se ele era meu avô e tudo mais. É que ele ficou viúvo e casou-se com a minha mãe, 30 anos mais nova do que ele. Acredita? Estão juntos até hoje e farão 25 anos de casamento. Cada um com uma história diferente. Mas isso sobre filhos adotados é verdade, sempre ouvi alguém dizer que filho adotado é revoltado,mas que nada! É fácil generalizar uma única atitude, ainda bem que já estamos em 2018 e mudando nossa consciência. Beijinhos, foi bom passar por aqui.
ResponderExcluirOi Ana! Eu voltei kkk mas quem duvidava que eu voltaria? E mais, fiz blog novo outra vez como não podia deixar de ser. Não sabia que vc foi adotada, mas entendo ter vergonha de algo que não deveria ter, tive algumas em relação à minha avó e não me orgulho. Grande abraço para você!
ResponderExcluirGosto, gosto muito..." dessa qualidade da memória de poder se moldar, acrescentar, decantar os fatos".
ResponderExcluirGosto tanto disto, que em post recente convoquei a criação de uma tribo, a dos que crêem ser possível "decantar as lembranças"( expressão tua).
Em criança, reagimos por olhares alheios; o que nos vale são os ciclos da vida por si mesma a nos alargar e maturar horizontes.
Vc eh filha de um amor irrefutável e perpétuo.
Boa continuação de semana, Ana.
Bjka,
Calu
Nossa Ana Paula, estou com lágrimas nos olhos!
ResponderExcluirQue bênção ter um pai amoroso assim e que beleza sua visão da adoção agora que está adulta!
Eu não tive essa sorte....Fui muito maltratada na infância.
Bjs
Belo depoimento e homenagem, mas sua visão infantil foi ressignificado e hoje pode ter clareza da importância do ato de adoção, ato de amor. Abços
ResponderExcluirOi, Ana... Eu havia digitado o maior textão. Não sei se enviou, pois houve um erro. De todo modo, o que resume tudo o que eu digitei é: estou de volta e com saudades! Fico feliz em te reencontrar aqui. A novidade é que meu blog agora se chama reversos literários. Estou também no Instagram, me rendi recentemente à plataforma (é o @reversosliterarios). Beijo grande a todos aí :*
ResponderExcluirOlá, Ana Paula!
ResponderExcluirNo final, o que importa é o amor que damos e recebemos, independente dos laços físicos que nos unem.
Adorei o que disse sobre a qualidade da memória. Que bom quando podemos "decantar" os fatos e conservar aquilo que realmente nos faz bem.
Um abraço,
Sônia
Aaah Ana, hoje só faço chorar aqui... Também gosto do que a memória faz com as experiências...
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