quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Uma página do meu diário
Nunca antes senti vontade de trazer aqui para o blog esse dia, essa página do meu diário porque ela é feia, cheira mal. A vida não é feita somente de coisas boas, todos sabemos. Nenhuma vida é cor de rosa. Essa página é, para mim, desconfortável.
De alguma maneira inexplicável, participar desta blogagem coletiva me trouxe o desejo de transcrever esta página.
Estávamos pontualmente reunidos à frente do portão principal às sete da manhã conforme o professor havia solicitado.
Durante quinze minutos somente ele falou. Era enfático e repetiu por quatro vezes "não perguntem nada, não queiram saber o motivo". E também nos tranquilizou e tentou nos descontrair dizendo que estaria tudo bem.
Éramos estagiários do curso de enfermagem e às sete e quinze entramos no hospital penitenciário do Carandiru.
Primeiro veio o cheiro e depois o som das grades se fechando atrás de nós, num estalo horroroso.
Meus olhos já tinham visto pobreza, cortiço, favela. Nada porém se comparava com aquele lugar.
O hospital tinha o nome de hospital e vários medicamentos em falta.
Eram celas, não superlotadas. Ao contrário, dois ou três pacientes por cela.
Levamos o café da manhã, se é que aquilo podia ser chamado assim, trocamos algum curativo cortando o esparadrapo no dente porque não podia entrar com tesoura e preparamos a medicação, ou melhor não preparamos porque a maioria estava em falta.
Só concluiria o curso quem não tivesse uma única falta porque seria preciso fazer este estágio novamente.
Cinco dias era o tempo de duração. Intercalando em uma semana segunda, quarta e sexta e na outra, terça e quinta. Comparando a outros estágios de sessenta dias, não era nada.
Não sei. Perdi a noção do tempo dentro daquelas grades, sabendo apenas que minha liberdade seria ao meio-dia.
"Mas professor, esse medicamento aqui, não deveria ser administrado com leite?".
Um deles me mostrou os desenhos que fazia q que estavam grudados na parede ao lado de sua cama. Eram traços de uma criança: sol, nuvem, uma pipa no céu, sorvete.
Me avisaram para não chegar perto de um sujeito. Muito hostil e viva isolado.
Ele me chamou. Fiz curativo. Ouvi "obrigado".
Nos cinco dias em que estive ali não perguntei nada, não me falaram nada. Tudo o que eu tinha aprendido nos livros, nas aulas sobre nutrição, medicamentos rigorosamente nos horários, nada tinha ali.
Nunca soube, nunca entendi. Mas estive num lugar que não existe mais.
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Um lugar que nunca existiu, sub-existiu, sub-estimou, um sub lugar, com sub-vidas, sub-nutrição, sub-atenção...dias negros que fizeram seus dias roxos parecerem lilás.
ResponderExcluirNem todos os capítulos de nossos diários são poesias, alguns são agonia... E você esteve no Carandiru, que experiencia!!! Obrigada por compartilhar é só o que posso dizer.
ResponderExcluirAliás, tenho dito isso muito hoje...
Noooossa!!! Só de imaginar isso, dá dor no estômago. Vc e seus colegas foram fortes, é claro que isso fazia e faz parte do processo, materia obrigatória e tal, mas que precisa ter mt sangue frio pra certas coisas, ahh isso tem. Acho que tem certos acontecimentos que marcam a gente pra sempre... isso foi marcante :-(
ResponderExcluirUma página forte, intensos sentimentos nela.Linda participação! Bom que não exista mais aquele lugar! chica
ResponderExcluirler essa postagem foi como levar um soco no estômago.
ResponderExcluirisso sempre mexeu muito comigo, e continuará mexendo, porque existe ainda, e muito.
o Carandirú foi demolido, mas ainda temos coisas horrorosas por aí a fora...
voce tem razão, precisa esquecer, porque cheira mal.
fiquei muito emocionada, e imagino como isso deve ter marcado você.
beijos querida, tenha um bom dia!
Linda participação! Ao momentos ruins também fazem parte de quem nós somos e o Brasil tem muitas páginas sujas. Muito triste. Ser profissional de saúde no nosso país não é fácil.
ResponderExcluirBeijo, Nadia
Que experiência! Confesso que quando li a última frase, quase desabei! Sou bastante susceptível às dores alheias e pensei, o lugar não existe mais e aquelas pessoas, será que ainda existem ou será que nunca existiram? Para as organizações sociais, governos e famílias, essas pessoas são afastadas do convívio e muitas vezes esquecidas, passam a não mais existir.
ResponderExcluirObrigada pela partilha! Por ter mostrado uma página da sua vida tão sua! Beijus,
Tem toda razão Ana, vida cor-de-rosa não existe e admiro muito quem é realista e não finge, nem oculta a realidade que, por vezes, cheira realmente muito mal.
ResponderExcluirCaraca... Você esteve no Carandiru! Impressionante, nunca imaginei ler isto em um blogue. Com certeza foi uma experiência única, agonizante, porém, não deve ser esquecida porque faz parte de você. E agradeço por compartilhar isto conosco.
Eu assisti ao filme e fiquei impressionando, imagino o sangue frio que vocês foram obrigados a ter. Ser profissional de saúde não deve ser fácil.
Meus muitos parabéns pelo post!
=> CLIQUE => Escritos Lisérgicos
Caramba, estágio em presídio deve ser difícil mesmo! O lugar mais triste que fui foi um orfanato. É ruim ver pessoas tão frágeis emocionalmente, porque quando crescem ficam amargas.
ResponderExcluirCaramba, que experiência hein amiga?
ResponderExcluirEu me lembro quando criança e passava ali em frente dentro do carro dos meus pais e ficava me perguntando como era lá dentro. Até hoje tenho essa imagem na cabeça, dos presos sentados nas janelas com os braços e pernas pra fora.
Uma pena que nosso sistema penitenciário seja tão ruim, eu realmente não acredito que todos sejam casos perdidos. Alguns (muitos) precisam mesmo é de oportunidade. Enfim, discussão que vai longe.
Adorei ler uma página do seu diário.
Obrigada por compartilhar.
Grande beijo
Nossa, que experiência forte.. lendo seu relato, lembrei dos noticiários do filme, sei lá... realmente, tem de ter estômago para encarar.. todos os dias, lembrar que não existe vida cor-de-rosa, erguer a cabeça e ser forte para os que precisam de você.
ResponderExcluirImagino como as imagens descritas no post devem estar vivas ainda, na sua mente.
Abraços!
Olá Ana Paula.
ResponderExcluirfico a imaginar sua força por estar lá, deprimiria qualquer coração.Olha me impressionou muito com este relato. Parabéns por sua participação. Beijinhos.
Ana Paula, putz! Muito triste isso. A única coisa que vejo de positivo em relação a essa área do Carandirú foi a presença do Dr. Dráuzio Varela. Um médico DE VERDADE e uma pessoa cheia de bons ideais (inclusive parceiro do Di Genio na fundação do Curso Objetivo).
ResponderExcluirBeijo
Manoel
Eu também já "estive num lugar que não existe mais", passei um dia a trabalho, até hoje ouço o som das grades.
ResponderExcluirBela participação!
abs
Jussara
estou curtindo essa blogagem coletiva. ela tá trazendo à tona essas experiências,que não fosse por outros meios, não compartilharíamos. é tão pessoal.
ResponderExcluirbom,eu só posso imaginar como deve ter sido pra você passar por esse estágio num hospital sem recursos...e numa prisão.
Oi Ana Paula,
ResponderExcluirque forte esse episódio aí.
Esta frase mexeu comigo:
«Perdi a noção do tempo dentro daquelas grades, sabendo apenas que minha liberdade seria ao meio-dia.»
Assisti o filme Carandiru e dá para ter uma ideia do ambiente pesado que existe lá dentro.
Grata por ter compartilhar conosco. Seu texto reflete na perfeição seu estado interior naquele momento.
Abraço além-mar.
Rute
Oi Ana Paula!
ResponderExcluirMenina, li seu texto num fôlego só! Que experiência de vida você teve! Não é para qualquer um não! Parabéns pelo texto que conseguiu levar junto nessa viagem todos que por aqui passaram. E obrigada pela visita e comentário em meu blog. Apareça sempre que quiser.
Bjs
Boa tarde...Parabens pessoa corajosa em todos os sentidos...Incrivelmente realista, verdadeira e com certeza será uma otima profissional da saúde, estamos precisando muito!
ResponderExcluirAbraços e um post., realmente impressionante!
Oi amada!
ResponderExcluirQue relato forte e emocionante.
Beijos
Selma
Seguindo pra nao perder ais nada : )