terça-feira, 1 de setembro de 2015

En(tristecer)tardecer


Eu e E. estávamos de pé, olhando através da porta corrediça de vidro, bebericando chá num copinho plástico para café.
Tão transparente e límpida a vidraça que era possível sentir-se lá fora.
Quinto ou sexto andar, não me lembro.
O entardecer era de inverno.
Lindo. Para mim.
Minha admiração fora entrecortada por um movimento brusco de E. que, dando as costas para o crepúsculo, revelou com semblante agoniado não gostar dessa hora.
Uma angústia lhe tomava ao entardecer; talvez fosse tristeza.
Evitava olhar.
E., à época tinha o dobro da minha idade. Fazíamos parte de uma turma que praticava yoga e ele cogitava mudar de horário pois o final da prática oriental terminava justamente na hora ingrata para ele. Tudo de bom que sentia ao exercitar seu corpo, sua respiração, esvaia-se com a paisagem externa.
Com meu entusiasmo juvenil, olhei-o incrédula e senti uma vontade imensa de dizer-lhe que estava errado e que precisava mudar.
Não o fiz. 
Sufoquei o ímpeto com o último gole de chá.
Foi quando ele disse ter que ir pois era seu dia de plantão no Centro de Valorização da Vida.

E. não mudou seu horário e continuou a partilhar comigo e outras pessoas um copinho de chá, sempre virado de costas para a despedida do dia e nos contava de seu trabalho de impedir que pessoas cometessem suicídio no ápice da angustia e desespero.

Esses dias, enquanto eu fotografava um despedir-se do sol, do dia, lembrei-me de E.
Talvez o seu desgostar dessa hora, conferiu-lhe total habilidade para ouvir, compreender e atuar com pessoas desesperadamente necessitadas de um apoio.
Há tempos que não ouvia nada a respeito do CVV.
Busca rápida pela web e me deparei com o site organizado, moderno, utilizando as plataformas digitais e fazendo um silencioso trabalho.

Eu continuo apreciando um pôr do sol. E continuo respeitando o desgostar de E. por esse momento, onde quer que ele esteja.

6 comentários:

  1. Lindo esse entardecer da foto. E Linda crônica.

    O CVV faz um trabalho maravilhoso e na certa, como E trabalhava lá à noite, sabia que iria encontrar tantas tristezas que já ficava triste ao pôr do sol...

    Compreensível e que bom que mesmo sem gostar dessa hora do dia, trabalhava como voluntário num serviço onde poderia fazer muitas e muitas pessoas acordarem para o dia e ao final de cada um poder agradecer que vivas estão!


    bijos,chica

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  2. As pessoas precisam de atenção e de ajuda, até mesmo os profissionais que trabalham com essas pessoas enfrentam uma luta interna qdo não conseguem alcançar seus objetivos.

    bjokas =)

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  3. A compreensão do outro só nos enobrece.
    Por outro lado sou como tu... também não consigo voltar as costas a um por do sol.

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  4. Também gosto do pôr e do nascer do sol.
    Apesar de E.não apreciar esse momento,tem o dom de ouvir e quem sabe,despertar no outro a vontade de contemplar muitos pôr do sol.
    Um abraço, Sonia

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  5. Também gosto do por do sol, das cores que imprime no céu, não é raro que me pegue sentada na janela do quarto do meu irmão (que já foi meu) olhando o céu... Mas respeito quem não gosta também.... sei lá, outro dia na aula de geografia me ocorreu que nessa hora a terra se volta para um lado onde não luz e nem calor do sol, é como se o planeta ficasse por conta própria, por conta daquilo que guardou do sol durante o dia, tem gente que parece sentir o peso da ausência do sol, mais que os outros.

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  6. Gosto do por do sol, pela beleza extraordinária que alguns entardeceres nos proporcionam, mas já experimentei, quando com o espírito mais conturbado, a sensação como que de abandono, de medo, diante da escuridão a aproximar-se. A noite intensifica o medo, porque traz as sombras e confunde-nos os sentidos. No silêncio da noite, todos os pequenos barulhos ganham nova dimensão, sendo assustadores. Não é o por do sol em si, mas o que ele significa, que assusta: a chegada da noite.
    No caso de E., havia/há o agravante de estar associado a um trabalho desgastante emocionalmente, e, como ele tão bem sabe, ser a altura do dia que aumenta o medo e a solidão daqueles com quem lida.
    Belíssima crónica, a sua, Ana Paula.
    bj

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