domingo, 11 de março de 2012

Tão distante, tão igual


Fechou o livro abruptamente.
Seu rosto sentiu a lufada que se desprendeu das páginas ao se juntarem com tamanha força, deixando pairar no silêncio do seu quarto um estrondo. O mesmo estrondo que parecia ter se desprendido de algum recôndito no interior dos seus cinquenta anos.
Apesar da náusea, quis reler o trecho.
A repugnância que estava sentindo por aquelas frases ia além do nojo pela cena descrita. Procurou cautelosa a página e iniciou a releitura:

(…) O intestino de Bhima faz um movimento, e ela faz uma careta contrariada. Agora vai ter que ir ao banheiro comunitário antes de ir para a bica d'água, e a fila vai estar maior ainda quando chegar à casa de Serabai, onde há banheiros de verdade. Ainda assim, é bastante cedo para que as condições estejam tão más. Algumas horas mais tarde, vai haver pouco espaço para andar por entre as consideráveis pilhas de excrementos que os moradores da favela deixam no chão de barro do banheiro comunitário. Depois de todos esses anos, as moscas e o fedor ainda fazem o estômago de Bhima revirar. Os moradores pagavam a uma harijan que morava do outro lado da favela para recolher as pilhas de fezes todas as noites, trabalho típico de uma pessoa da casta dos intocáveis. Bhima a vê algumas vezes, de cócoras no chão, varrendo os montes de excrementos para dentro de um cesto de vime forrado com jornal. Às vezes seus olhos se encontram, e Bhima faz questão de sorrir para ela. Ao contrário da maioria dos moradores das favelas, Bhima não se considera superior àquela pobre mulher.
Bhima faz o que tem que fazer e retorna à bica ( … )



Na sua mente corriam como corcéis emparelhados, as indagações sobre uma cultura tão distante da sua e as imagens recém despertas da criança de sete anos. A infância adormecida no recôndito foi desperta por uma mulher que nunca viu.

Após fritar cuidadosamente as coxinhas, ela saía com sua mãe no crepúsculo, naquela luz tranquila do final do dia, batendo de porta em porta para a venda que auxiliaria no sustento da pequena família de única filha.
E das repetidas vezes que aquela boa mulher fazia suas generosas compras, entre o portão da rica casa, passando pela sala com televisor colorido e telefone cinza-chumbo até a cozinha com a parede inteirinha de armários, surgiram duas crianças e entre elas e a menina pobre do portão, surgia a amizade.
As duas da mesma idade; o irmão mais novo que sempre queria estar entre as brincadeiras.
Espertas, colocavam-no no papel de chefe da família e o mandavam trabalhar em algum lugar longe delas. Ou então, ele seria um rico empresário, como o próprio pai, e vivia em viagens ao exterior. Assim não poderia dar as caras na brincadeira.
Os dias, as horas de ficar na casa da amiga só iam aumentando conforme o fortalecimento da amizade. Até que chegou o dia de dormir na casa da amiga.
Euforia geral das crianças e daquela mãe de sorriso bonachão e roupas elegantes.
Havia uma caminha que se puxava debaixo do beliche e naquele momento de festa para todos, o irmãozinho trocou sua cama pela caminha e a menina deitou-se na dele.
O silêncio custou a chegar naqueles olhos imbuídos de infância.
Não estava dormindo ainda, talvez fosse o excesso de alegria, mas percebeu o pai de seus amigos entrando na penumbra do quarto e fingiu estar dormindo.
Foi então que a voz sussurrada daquele homem lhe açoitou a alma.
  • Rodrigo, como deixa essa menina dormir na sua cama? Você já viu a casa que ela mora? Você nem sabe se ela tem alguma doença. Que isto não se repita e amanhã de manhã mande a empregada desinfetar a tua cama.
Tarde demais para se levantar e ir embora.
Peso demais para uma vida de sete anos.
Aquele homem nunca viu o seu pai caiando as telhas de amianto ou sua mãe orgulhosa com os joelhos avermelhados depois de passar a cera em pasta no chão de vermelhão que ficava lustroso como as joias da boa mulher.
Seu desconforto ao ler aquele trecho ia além, muito além dos detritos. Ela já foi intocável como aquela mulher de um país tão distante.
Aquela mulher que recolhe detritos num cesto de vime e aquela criança se encontraram na lufada das páginas de um livro.
A náusea havia passado e se misturavam nos seus recônditos, os cheiros de uma Índia longínqua e de uma casinha de telhas caiadas que já não existe mais.

Imagem daqui
Livro: A distância entre nós - Trity Umrigar - página 16

7 comentários:

  1. Incrível como essas coisas pra nós parecem inadmissíveis, mas existem... E como!Lindo teu post. beijos,chica

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  2. Ana Paula, sabendo da realidade disso e se colocando no lugar da menina visitante, a gente ferve por dentro. A primeira reação é a de "chutar o balde". Mas a corda sempre quebra do lado mais fraco. Muito triste ess discriminação. Vira o estômago da gente.
    Beijo.
    Manoel.

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  3. Um conto maravilhoso Ana Paula! Duas culturas diferentes, mas a mesma discriminação. Tanta petulância por parte dos homens que se tem dinheiro e poder, se sentem superiores aos demais. Qual o quê! Têm as mesmas necessidades físicas e quiça doenças bem piores, uma delas é a do espírito.
    Ah coisas que nos ficam guardadas e num determinado momento vem à tona com força...
    Adorei sua maneira de engajar o texto descrito com o seu texto contado.
    Beijokas doces

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  4. Afinal a náusea anda tão perto de nós e não precisamos de ir até junto de Bhima para sentirmos o odor fétido da discriminação abjecta!
    Muitos beijinhos.

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  5. Ana querida, lindo esse conto.
    Nem posso imaginar se voce realmente conheceu essa personagem ou é fruto de sua imaginacao.
    Nao importa, o que realmente importa e a mensagem.
    E ela chega crua, dura, hostil.
    Voce tem razao, discriminacao é nojento.
    Principalmente quando é dissimulada, e contra crianca.
    Revoltante porem real. Devemos fazer nossa parte, nao permitindo que nossos filhos e netos cometam tamanha maldade.
    beijos amiga, parabéns.

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  6. Caramba, é o meu género de livro.
    Não descanso enquanto não o arranjar, vai ter ser uma das minhas próximas leituras.

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  7. Oi Ana,
    Já na primeira frase do trecho "recortado" reconheci a sensação que você desencadeia tão bem. Lembro de ter relido, como você, esse trecho de "A distância entre nós". Nessas horas, é bom reparar que não há distância entre nós quando uma boa leitura nos aproxima. Tipo de coisa mágica: encurtar distância, acordar sensações!
    Adorei o seu conto! Rico em imagens, forte em impressões! Triste? Real como a dor da menina e de Bhima.
    Obrigada pelas suas palavras lá no meu blog. Amizade de tinta é tb mágica.
    Um beijo,
    Rachel Facó

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